11.7.11

ENCONTRO SOB O PÓRTICO

A tensão estava a tornar-se insuportável. Havia tentado ganhar tempo, mas era preciso acabar de uma vez. O problema não era averiguar quem tinha razão. Isso ele sabia. Tratava-se de tomar uma decisão prudente. Que o condenado à morte era inocente, estava claro. Não obstante, do modo como as coisas se apresentavam, absolvê- l`O tornava-se perigoso. Estava em jogo a sua reputação ou até mesmo o seu posto. Por outro lado, repugnava-lhe ceder à pressão daquela gentalha. Sabia que estavam a mentir. Adivinhava-lhes as intenções e incomodava-o ver-se encurralado por eles. No entanto, tinha esgotados os seus recursos. Ou se pronunciava a favor do acusado ou O abandonava definitivamente à mercê da chusma.1 Não podia continuar a demorar a sua decisão. Tinha de tomar posição diante de Jesus. E isto podia ser-lhe fatal.2
Exasperado pela insistência dos acusadores e pela sua própria impotência para resolver um caso que lhe parecera de pouca monta, Pilatos já não sabe o que perguntar àquele homem estranho, cuja linguagem não chega a entender. Pensando que poderá tratar-se de um desequilibrado,3 tenta falar-Lhe com brandura sobre as suas manias:
- Então és Tu o rei dos judeus...?
Mas o réu responde:
- Dizes isso por iniciativa própria, ou porque te estão a pressionar?
O homem mostra que está em seu perfeito juízo. Pilatos irrita-se pela sua falta de perspicácia. Humilhado por ter-se deixado apanhar numa querela de fanáticos, explode:
- A Tua gente, os sacerdotes que Te entregaram a mim, dizem que Tu pensas que és rei. Não ouves o que testemunham contra Ti?4
O alto clero local havia pronunciado uma sentença de morte sem ter poder para executá-la. Precisavam de obter da autoridade competente a sua legalização, e por isso forçaram o procurador romano a entrar em cena.5
No entanto, apesar do seu alto cargo, este será apenas um actor secundário, obrigado a fazer de juiz naquele simulacro de julgamento.
Os denunciantes eram membros do Sinédrio, ou seja, os representantes oficiais da religião de maior influência no país. Por razões que o procurador não tardará a descobrir, aqueles religiosos estavam a incitar a multidão a pedir a crucificação de um homem cujo delito tinha sido abrir os olhos do povo para a falsidade dos seus directores espirituais e pregar uma vivência da fé mais fraterna e autêntica.6
Condenavam-n`O à morte porque Ele lhes havia condenado a vida.7
Muitos dos presentes poderiam citar de memória as suas revolucionárias palavras:
- Amai os vossos inimigos. Fazei bem aos que vos odeiam. Bendizei os que vos maldizem. Orai pelos que vos maltratam e vos perseguem...8
- Então, Tu pretendes ser rei ou não?
Jesus fixa-o nos olhos e diz:
- É verdade que quero reinar, mas de outra maneira. Se o Meu reino fosse como os outros, teria arranjado soldados para Me defender. O Meu empenhamento é fazer avançar a causa da Verdade em todo o mundo. Por isso os que são a favor da Verdade Me escutam....9
A verdade? Como podia um homem naquela situação defender a verdade? Pilatos não pôde evitar de olhar para as mãos de Jesus, intumescidas, atadas pelos pulsos com uma grossa corda. Porque não procura antes defender-Se dos Seus acusadores para salvar a pele? A quem importa a verdade? Dispara então a sua famosa pergunta:
- Que é a Verdade?...10
Pergunta importante que todo o ser humano faz a si mesmo alguma vez na sua vida, com maior seriedade do que Pilatos. Porque, aparentemente, nessa pergunta que atira com soberba indiferença, sem esperar a resposta, manifesta toda a presunçosa leviandade do homem maduro, ao mesmo tempo que a sabedoria de curto alcance do homem de estado que só acredita na supremacia da força e da astúcia.
A sua reacção não é a do céptico que se ufana de não crer em nada, e que afirma que a verdade não existe ou que é impossível conhecê-la. Daquele que só professa a fé que deve fingir professar para o seu cargo: a fé no culto ao Império e ao imperador.11
Fixando condescendentemente o enigmático réu, na qualidade de alto funcionário e europeu liberal, propõe-lhe um acordo. Uma pequena mentira útil para acabar com o litígio.
- Diz-me que a acusação que Te fazem é falsa e eu solto-Te. É verdade que Te consideras rei?12
O contraste entre o representante do Império Romano e o do Reino da Verdade é manifesto:
Por um lado, o procurador encarna a autoridade que abusa do seu poder. O interesse e, se for preciso, a violência decidirão o caso. A razão da força acima da força da razão.
Por outro lado, Jesus encarna o destino dos mártires, vítimas da sua autenticidade, desde Abel até hoje. Que outro destino pode esperar um acusado indefeso face a um poder absoluto e a uma multidão manipulada que exige a Sua morte, quando apenas tem do Seu lado a verdade?
Que é a verdade? Pilatos desinteressa-se desse assunto. No seu interrogatório, apenas pretendeu averiguar a pericolosidade do réu. Constatando que este não aspira ao poder, já não se preocupa com o que Ele possa dizer. Jesus também Se cala. Se Pilatos tivesse sido um pescador, uma meretriz ou um cobrador de impostos, teria levado a Sua análise um pouco mais longe, como o fizera na noite anterior, e teria dito:
- Eu Sou o Caminho, a Verdade e a Vida.13
Mas o procurador não teria compreendido o significado dessas palavras. Considerava-se demasiado culto para crer que poderia aprender alguma coisa de um prisioneiro. Além disso, como político, interessava-lhe mais a opinião pública do que a de um só indivíduo. E assim cometeu o erro da sua vida: não escutar o pensador mais profundo e influente de todos os que o Império tinha ou alguma vez viria a ter.
Estranho paradoxo do destino, o nome de Pôncio Pilatos só viria a ser recordado na posteridade14 precisamente por ter menosprezado naquela manhã de Primavera do princípio dos anos trinta o misterioso detido que, sem figurar sequer nos anais oficiais, chegaria a ser o centro da História.
Embora o governador fosse, sem dúvida, um profissional competente, capaz de ser justo, na sua paródia de julgamento não chegou a esclarecer a verdade do seu interrogado, simplesmente por não prestar atenção às Suas respostas. Se em dado momento optou por defendê-l´O contra os Seus acusadores, foi mais por ódio a estes do que por respeito ao primeiro.
O medo de cometer um erro táctico e de que os seus inimigos o denunciassem a César vai fazê-lo ceder perante a pressão. Os seus próprios estratagemas, demoras, hesitações e meias medidas vão arrastá-lo de concessão em concessão pela rampa da injustiça, sem possibilidade de se deter.
Agora restam-lhe apenas duas alternativas: ou ceder vergonhosamente depois de tanta resistência, ou assumir o risco de enfrentar a classe dominante do país. Em qualquer dos casos quer desembaraçar-se do réu seja como for. Se possível, obtendo a Sua absolvição,15 ainda que tenha de recorrer à tortura física. Ordena então que levem Jesus para O flagelar.16 Fazendo-o, põe em marcha a complexa engrenagem da violência que o arrastará inexoravelmente até um desenlace cruel.17
É que os sacerdotes não se contentarão com tão pouco. Essa solução não bastará para afastar Jesus do seu horizonte.Mesmo depois de desfigurado, a Sua serena presença continuará a interpelá-lo, como exigindo-lhe que vá até ao fim da sua honradez ou da sua cobardia. E é isso que vai fazer, libertando Barrabás, o criminoso, e castigando o inocente que o incomoda.
- Aqui está o homem!18
Também não atinge o alcance desta proclamação. Não se dá conta de que acaba de enunciar a Verdade em cuja existência não acredita. Convida assim todo o mundo a ver em Jesus o representante da humanidade sofredora e humilhada.
O homem. Abandonado por quem diz estar do Seu lado, atraiçoado pelos Seus, flagelado pelos poderosos e manipulado pelos que pretendem ser os representantes de Deus, Jesus é certamente o Homem de dores anunciado pelos profetas,19 que veio para assumir a condição humana até ao máximo e tentar salvar a humanidade da sua desumanização. Mas ali, aos olhos de todos, nada mais existe do que um condenado à morte, diante do qual uns se enfurecem e os restantes se retraem.
- Se soltares este homem não és amigo de César!20
Por fim, alguém encontrou o ponto vulnerável daquele funcionário encurralado. O seu destino como
magistrado romano dependia do favor de César. Uma acusação de infidelidade política, habilmente apresentada por advogados experientes, podia levá-lo à perdição.21 Aturdido pela pressão dos acusadores e pela confusão dos seus próprios sentimentos, não sabe o que fazer, e pergunta em voz alta, fingindo toscamente essa cumplicidade dos demagogos mal esclarecidos que se julgam óptimos políticos:
- Que faço finalmente com Jesus, o suposto Messias?22
Que irá fazer Pilatos? O que fizeram no seu caso os Pilatos de todos os tempos: o que no momento lhe parece mais útil. Agir por considerações conjunturais e tentar conservar o posto. Para isso terá de sacrificar a justiça, a cuja defesa o obrigam as suas funções, e ceder à vontade daqueles a quem mais detesta. Se bem que não consinta em pronunciar uma condenação legal, ver-se-á obrigado a contradizer-se publicamente, executando alguém a quem declarara inocente.
Viver é escolher. Mas, lamentavelmente, as nossas escolhas nem sempre são o resultado das nossas convicções, mas das nossas circunstâncias, da nossa coragem ou da nossa fraqueza. Frequentemente, nem sequer temos clara consciência dos verdadeiros motivos pelos quais finalmente agimos ou deixamos de agir.
Se Pilatos tivesse agido com integriadde e cumprido o seu dever, teria absolvido Jesus. Mas, prostituindo a sua autoridade, incluiu-se na infame lista dos verdugos da história, oportunistas do poder, gananciosos ou irresponsáveis, a quem os profetas bíblicos qualificam de monstros. Aquelas bestas terríveis descritas nas visões de Daniel e do Apocalipse, representam todos os poderes abusivos, todos os governantes e membros de sinédrios a quem, por se oporem à justiça, Deus considera Seus inimigos, sobretudo quando têm a ousadia de pretender agir em Seu nome.
A última pergunta do procurador revela já o fundo da sua abdicação:
- Devo então crucificar o vosso rei?
A hierarquia sacerdotal conseguiu o seu objectivo e põe ponto final ao assunto com uma adulação abjecta:
- Não temos outro rei senão César!23
A história encarregar-se-á de transformar essa mentira táctica em dolorosa verdade.24
- Crucifica-o! Crucifica-O! Crucifica-O!25
Perante o clamor da multidão, Pilatos rende-se. Tentou desfazer-se de Jesus afirmando a Sua inocência, remetendo-O ao tribunal de Herodes, negociando a Sua liberdade em troca de Barrabás, flagelando-O para saciar a sede de sangue dos Seus acusadores e para lhes despertar a compaixão. Tudo fracassou.
A única coisa que o governador não faz é arriscar-se, por causa d´Esse pregador inquietante, a ser caluniado diante dos seus chefes. Sucumbindo à tirania do «que dirão», Pilatos encerrará o caso com o gesto teatral de lavar as mãos.26
Mas a água não absolve ninguém de nenhum crime, e as mãos de Pilatos continuarão tão manchadas como antes. O silêncio do réu pesará sobre ele como uma condenaçao mais atroz do que a morte. E, ainda que tente apagá-l´O da memória, o rosto admiravelmente sereno d`Aquele moribundo continuará a dizer-lhe quem é o vencedor e quem são os vencidos naquele processo.
A inscrição que manda pôr sobre a cruz soa quase como uma confissão reparadora: «Jesus, Nazareno, rei dos Judeus»27... Com ela assinala a página mais paradoxal da história: Um homem acusado falsamente pelos sumos pontífices da Sua religião é executado por defender a Verdade depois de ter sido declarado inocente pelo representante máximo do direito romano. O maior apóstolo dos direitos humanos é enviado para a tortura.
Que teria acontecido se Pilatos se tivesse mantido fiel às suas convicções e tivesse tomado uma decisão corajosa? Provavelmente não teria acontecido nada do que temia. O tempo teria demonstrado que as acusações levantadas contra Jesus e contra ele eram falsas... Talvez, no máximo, Tibério o tivesse deposto, mas Pilatos teria levado consigo o consolo de uma consciência em paz.
Resistir à verdade acarreta, às vezes, consequências trágicas. Pilatos descobrirá muito em breve a inutilidade das suas concessões. Pouco depois será na mesma acusado pelos próprios que o forçaram a entregar Jesus, deposto pelo prefeito da Síria e finalmente exilado nas Gálias pelo imperador Calígula.28
Pilatos virou as costas à verdade para não complicar a sua vida. Mas ninguém fica a ganhar quando sacrifica os seus valores éticos. Segundo a tradição, a sombra de uma cruz perseguirá a sua memória, e até à morte o torturará a incurável obsessão de lavar das mãos umas indeléveis manchas de sangue.29
A esposa do procurador foi mais fiel a si mesma do que o marido. As informações que tinha e um estranho sonho que a havia atormentado na noite anterior ao processo tinham-na levado à convicção de que Jesus estava inocente. Em vão o advertiria, receosa:
- Não te envolvas na morte d´Esse justo.30
Uma lenda antiga diz que, no seu sonho, Prócula tinha ouvido como, século após século, em todas as línguas se repetia que Jesus «padeceu sob Pôncio Pilatos».31
Por desprezar a verdade, a memória do seu gesto perpetua-se através dos tempos numa das orações mais repetidas da humanidade: o Credo. Deste modo paradoxal, o nome de Pilatos testifica que, com Jesus, Deus entrou efectivamente no tempo e no espaço, irrompendo na vida dos seres humanos tão de carne e osso como nós. E que a Verdade nos interpela a cada um como um dia interpelou aquele comandante militar.
Infelizmente, a verdade espiritual capaz de transformar a sua vida foi tratada por ele como por tantos outros antes e depois: desprezada, ridicularizada, calada, negociada, eliminada e sepultada.
Não seria preciso esperar muito tempo, no entanto, para descobrir o desenlace daquele conflito desigual. Nem para revelar o alcance inimaginável daquela morte sobre tantas vidas.32
Ninguém podia saber que Deus estava levando a cabo os seus desígnios acima de toda a corrupção do direito, de toda a impostura do clero e de todos os erros de Pilatos. A cruz revelava que, apesar das aparências, não estamos sós neste mundo injusto. Que Deus, para atrair à Vida, era capaz de compartilhar a nossa precária existência até ao ponto de afrontar a morte. Sem deixar de respeitar a liberdade humana, o Seu plano de salvação começava a triunfar, ainda que, aparentemente, fosse conculcado pelos seus destinatários. Porque, de um modo misterioso, que só a graça divina pode entender, o amor d´Aquele que derramava o Seu sangue podia com todo o ódio do mundo.
Só pelo facto de suscitar a sede de justiça, Jesus, sobre a cruz, estava já a começar a conquistar os corações, inclusive dos Seus algozes, fazendo-os desejar a possiblilidade de uma reparação das suas faltas e de uma vida melhor.33 O tempo demonstrará até que ponto tinha razão quando disse que tinha vindo para fazer prevalecer a Verdade.
Por isso, a pergunta de Pilatos - «Que é a Verdade?» - pode-se considerar céptica, sofisticada, mas não inoportuna. Não é uma pergunta original, como tão pouco o era o procurador. Desde há muitos séculos, sábios e santos não tinham parado de a fazer. Também não é uma pergunta definitiva, já que os homens e mulheres inquietos de todas as épocas - cientistas, pensadores, religiosos, artistas, poetas - têm continuado a fazê-la até agora. Mas é vital. É a eterna pergunta do ser humano que quer ter certezas, que necessita de um ponto de referência para construir a sua escala de valores e de uma luz que o guie no meio das trevas.
Neste mundo tão complexo em que vivemos, onde cada um apregoa a sua verdade, onde é tão fácil enganar e ser enganado, como encontrar esse farol seguro, essa plataforma firme na qual nos possamos apoiar e sobre a qual construir, confiantemente, um projecto de vida?
* Para dizer a verdade - essa «realidade que não se pode negar racionalmente»34 - é preciso desejá-la e procurá-la, sinceramente. A verdade, como qualquer pedra preciosa, tem várias facetas. Não que seja necessariamente complicada ou difícil. Não obstante, para apreendê-la, precisamos de a contemplar na sua totalidade. Uma parte da verdade não é a verdade. E metade de uma verdade é uma simples mentira. As meias verdades são frequentemente odiosas, mas tornam-se particularmente detestáveis no âmbito espiritual, quer dizer, na dimensão da experiência humana que atinge a parte mais profunda do ser. Todos conhecemos o velho conto oriental dos cegos e do elefante,35 que sublinha a tendência comum de confundir a verdade com o que é apenas um aspecto dela.
* Para o investigador sincero, a boa fé não basta; tem de ser acompanhada de uma boa informação. Porque verdade não é sinónimo de sinceridade: a sinceridade é subjectiva - por conseguinte, muito difícil de julgar. A verdade é objectiva - portanto, susceptível de ser julgada. E sempre será preferível a sinceridade na verdade, do que a sinceridade no erro.
* Confundir verdade e opinião não seria grave se nos mostrássemos dispostos a reconhecer que a nossa posição pode não ser a melhor. O problema está em que da defesa da opinião à obstinação vai apenas um passo. Tem-se dito que nada é mais querido do que as nossas próprias opiniões, e não há nada mais difícil de abandonar.36 O sábio Salomão já dizia que «maior esperança há no tolo do que» num «sábio a seus próprios olhos.»37
* O direito que cada um tem, do ponto de vista da inalienável liberdade de consciência, de crer no que quiser ou de não crer em nada, é indiscutível. Todos temos direito à compreensão e à tolerância. A procurar a verdade e a desinteressarmo-nos dela. A cada um assiste o direito de agir de acordo com a sua consciência e o seu sentimento de responsabilidade. Mas isso não quer dizer que todas as atitudes sejam igualmente sensatas. Sobre um determinado ponto pode haver muitos pareceres.
* Verdade transcendente, embora não sejamos capazes de a apreender plenamente, só uma. Por isso, quando a nossa opinião deixa de ter qualquer regra ou critério além de nós mesmos, parecemo-nos lamentavelmente com aqueles cegos da fábula, empenhados em confundir um elefante com uma árvore ou uma corda. Ser autenticamente sincero é procurar a verdade nas suas fontes, por todos os meios ao nosso alcance. Essa é a única sinceridade capaz de nos levar da convicção à certeza.
* Quando procuramos defender a nossa posição mais do que a verdade, fazemos como Pilatos. Deixa de haver sinceridade na nossa atitude e a nossa obstinação transforma-se numa camuflagem para as nossas desculpas.
É fácil encontrar pretextos. Até os textos sagrados podem ser manipulados e utilizados para defender critérios pessoais ou de grupo, com resultados que vão desde as mais pitorescas heresias até às guerras santas mais sangrentas. Qualquer pessoa que a isso se proponha, será capaz de obter subterfúgios para confundir tanto as passagens difíceis como as claras e simples.»38 (É até frequente aqueles que mais se opõem às Sagradas Escrituras terem um conhecimento superficial dos seus ensinos, como se diante do receio de encontrar alguma coisa que não desejam, a rejeição lhes desse um certo sentimento de segurança.)
Por isso, paradoxalmente, embora sendo a religião um lugar privilegiado de encontro do homem com a Verdade Suprema (leia-se Deus e a Sua Revelação), existem nessa esfera tantas «verdades» e tantos credos diferentes.
* A obstinação e a falta de sinceridade cegam. O erro escraviza. Os erros pessoais ou históricos - a que chamamos «nossas verdades» -, transformados em preconceitos, tradições ou dogmas, amarram os seres humanos a posições que lhes restringem a liberdade e, o que é pior, também a alienam. Porque é muito mais difícil ser amigo da verdade até ao martírio do que tornar-se seu apóstolo até à intolerância.39
* Contudo, a verdade é libertadora por natureza. Jesus disse: «Conhecereis a Verdade e a Verdade vos libertará.»40 Daí que a fidelidade à verdade só possa comparar-se à fidelidade da bússula ao pólo. Fixar a agulha, para si ou para os outros, é perigoso. Por fidelidade ao seu compromisso, a agulha tem de ser sempre livre. Isto pode parecer muito simples. Mas o facto de algumas verdades serem muito elementares não lhes tira a mínima parcela de valor.
* Se Deus não existisse, a verdade (referimo-nos sempre ao âmbito religioso e moral) seria relativa. Mas se existe, Ele é a nossa referência absoluta. Os nossos esforços, separados d`Ele, levam necessariamente a verdades humanas, todas relativas. Por isso necessitamos de dar ouvidos, não apenas à natureza e à consciência, mas também à revelação que Jesus veio difundir, essa «luz verdadeira que alumia a todo o homem que vem ao mundo.»41 A Luz que permite descobrir e enfrentar a realidade, de um modo mais realista.
* Ao contrário da verdade eterna da razão procurada pelos filósofos, esta verdade não é um conhecimento teórico mas sim existencial, que compromete o ser na sua totalidade. É uma vivência prática, experimental, que nos liberta dos nossos temores e permite a nossa realização plena. Além de nos convencer, transforma-nos. Por isso não basta conhecê-la: é preciso vivê-la. Todos os que a seguem, à medida que a sua vida se põe em harmonia com ela, passam, da procura para possuir a verdade, ao desejo imperioso de que a Verdade os possua.
Desde aquele encontro sob o pórtico, o processo de Jesus continua, assim como o Seu testemunho a favor da Verdade. E ainda que muitos não cheguem a tomar consciência disso, todos nós perguntamos alguma vez na vida, como Pilatos: «Que farei de Jesus, chamado o Cristo?»
Cada vez que O condenamos sem O ter escutado, ou não vamos até ao fundo das nossas convicções porque temos medo, ou porque nos é mais cómodo ser práticos do que coerentes; cada vez que, apesar das nossoas boas intenções, não ousamos pronunciar-nos pela verdade quando isso comporta algum risco, e tendemos a adiar a nossa decisão, ou a procurar escapatórias; cada vez que abafamos a consciência, dizendo a nós mesmos que para evitar conflitos é preciso saber esperar e fazer concessões; cada vez que chamamos prudência à fraqueza e paciência à cobardia, estamos a agir como Pilatos.
Hoje, como naquela época, quem não se quer comprometer continua a preferir o apoio do poder e da maioria. Por ser arriscada, a verdade que bebe nas fontes, é sempre minoritária e, portanto, só ousam defendê-la os valentes. Como é independente do número dos seus adeptos, como não se decide por votaçao, nem se deixa impor por decreto-lei, nem se adopta por aclamação popular, não costumam tê-la as massas nem os seus dirigentes. Continua a possuí-la Cristo. E como Ele, os Seus seguidores são muitas vezes tratados como loucos, às vezes como heróis e inclusivamente como mártires, mas sempre como dissidentes.

NOTAS DO AUTOR:
1. O Evangelho de João situa este encontro num lugar chamado em grego Lithostrotos e em hebraico Gabata, que quer dizer, «o lajedo» (19:13), que foi localizado no pátio principal da Torre Antonia. Os mais de dois mil metros quadrados descobertos compreendem 1 700 lajes de cerca de dois metros de comprimento por um metro de largura. (P. Benoit, «L´Antonia d`Herode le Grand et le Forum oriental d`Aelia Capitolina», Harvard Theological Review, 64, 1971). O magistrado romano devia fazer a justiça no praetorium, constituído pelo «tribunal» (estrado de forma semicircular fácil de transportar) e pela cadeira curul, que se colocava sobre o estrado e na qual se sentava o pretor para ditar a sua sentença. O procedimento seguido por Pilatos é o habitual neste género de assuntos (cf. Cícero Pro Cluentio 58).
2. Os textos de Mateus 27:1-31; Marcos 15:1-21; Lucas 23:1-25 e João 18:28 a 19:16 dão-nos a descrição do processo de Jesus diante de Pilatos.
3. João 18:33. Sem dúvida Pilatos teria soltado Jesus se O tivesse considerado um simples louco. No ano 62, o procurador em exercício recusou-se a condenar um outro judeu, filho de Ananias, acusado também de profetizar a destruição do templo (Josefo, Guerra 6:300-309; cf. Marcos 14:55-59).
4. João 18:34-35 (cf. Mateus 27:11-14).
5. Os Romanos haviam reconhecido oficialmente ao Sinédrio o poder de instruir os processos penais e de pronunciar sentenças segundo a legislação judaica. Mas Augusto tinha limitado as suas atribuições. Cada condenação à morte devia obrigatoriamente ser ratificada pela autoridade romana. Por consequência, o jus gladii pertencia exclusivamente ao preconsul. Portanto, se o Sinédrio vinha procurar o representante de Roma (João 18:31), não era para aplicar uma multa, uma excomunhão ou as trinta e nove chicotadas regulamentares para certos castigos (II Coríntios 11:24). Porque podia fazê-lo sem a autorização do procurador. O que pretendia era a autorização de proceder à execução capital.
6. Lucas 22:24-30.
7. Ver sobretudo Mateus 23:1-36. As implicações políticas de acção de Jesus explicam em parte a hospitalidade dos dirigentes do país (cf. João 11:45-53).
8. Mateus 5:21-26, 38-48.
9. João 18:36,37.
10. João 18:38.
11. Giovanni Papini, Vida de Jesus, pág. 344.
12. João 18:37.
13. João 14:6.
14. De Pôncio Pilatos, além do seu encontro com Jesus, a história apenas regista que foi um cavaleiro romano e exerceu o cargo de prefeito da Judeia sob Tibério, entre os anos 26 e 36, antes de ser destituído pela sua infeliz actuação política. O único testemunho - fora a Bíblia e o texto de Josefo - provando que Pilatos governou a Palestina é uma inscrição fragmentária em pedra, encontrada em Cesareia por uma expedição dirigida por A. Frova em 1961, (Siegfried H. Horn, L`Archéologie biblique en 30 ans, 1948-1978, Editions Luminar, 1980, págs 49, 50.
15. É sem dúvida a razão que levou Pilatos, quando soube que Jesus vinha da Galileia, a enviá-lo a Herodes, o tetrarca daquela região, que então se encontrava em Jerusalém para as festas da Páscoa (Lucas 23:5-12). No direito romano, era a situação geográfica que determinava de que tribunal se dependia, ou pelo lugar da detenção (forum aprehensionis)ou pelo lugar onde tinha sido cometido o delito (forum originis). Herodes, por conseguinte, não podia exercer jurisdição naquele assunto porque Jesus tinha sido preso na Judeia por um delito de «agitação pública» que afectava todo o país e não exclusivamente a Galileia. Pilatos utiliza a presença de Herodes para tentar livrar-se de pronunciar uma sentença. Sobre as anomalias jurídicas do processo de Jesus, ver Paul Winter, Le procès de Jésus, Muchnick Editeurs, 1983.
16. João 19:1-4.
17. Fílon de Alexandria, seu contemporâneo, descreve Pilatos como um homem «arrogante, obstinado e cruel»(Embaixada a Gaio, pág. 38). 18. João 19:5. Cf. E. G. White, O Desejado de todas as Nações (Publicadora Atlântico, 1992), pág. 785.
19. Isaías 52:13 a 53:12.
20. João 19:12.
21. Os numerosos agravos que Pilatos fizera ao povo tinham-no tornado muito impopular. Um dos seus primeiros erros foi transferir os quartéis de Cesareia para Jerusalém. A presença, nas proximidades do templo, de estandartes militares, considerados símbolos de idolatria pelos judeus conservadores, provocou uma entrada tumultuosa na residência do procurador para exigir a retirada imediata dos ofensivos símbolos. Irritado por esta contrariedade, Pilatos ordenou aos soldados que cercassem os manifestantes e abatessem todos aqueles que não se dispersassem imediatamente. Constatando que estes preferiam morrer a permitir a profanação da cidade santa, teve de ceder. A história do seu governo é abundante em actos cruéis, como o massacre dos peregrinos galileus, citada em Lucas 13:1-3, (cf Josefo, Guerra, 2:169). A maneira como ele trata Jesus condiz bem com o seu humor instável e incoerente.
22. Mateus 27:22.
23. João 19:15.
24. Josefo conta em pormenor as circunstâncias que explicam a revolta de Israel contra os Romanos nos anos 66 a 70 (Guerra, 2:284 a 7:20). Esta guerra determinou a perda da pouca autonomia que o país ainda conservava. A cidade de Jerusalém e o templo foram tomados por Tito e arrasados em 70-71. De todos os edifícios da cidade não restaram mais de três torres e uma parte da muralha acidental. Em 135, o imperador Adriano estabeleceu ali uma colónia romana, com a intenção de fazer desaparecer todos os vestígios de judaísmo. Substituiu o nome da cidade pelo de Aelia Capitolina e dedicou o local do templo ao deus Júpiter (Eusébio, História IV, 6:1-4). Os Judeus foram desterrados, sob pena de morte, e Israel deixou de existir como entidade política sobre o território da Palestina até ao século XX (1948).
25. Mateus 27:22; Marcos 15:14; Lucas 23:20-23: João 19:6, 14-16. No primeiro século, os Romanos praticavam comummente o suplício da crucificação. Cícero chama-lhe a «tortura mais cruel e mais vergonhosa»: «Prender um cidadão romano é um abuso, bater-lhe é um delito, matá-lo é quase um parricídio. Que dizer, então, se é pendurado numa cruz? Não há qualificação para uma coisa tão infame.» (De finibus 5:92). Fílon qualifica-o de «a maneira mais baixa e vil de terminar uma vida marcada pelo mal.» (De providentia 2:24-25). Josefo descreve inúmeras crucificações, algumas colectivas, durante os conflitos de Israel com Roma (Guerra 5:44a-51;2:75; Ant 17:295; 2:241; 20:119; Guerra 2:253, 306, 308; 3:321; 5:289, etc.) Normalmente, infligia-se apenas aos escravos sediciosos ou nos casos de alta traição. Expunha-se o supliciado à entrada da cidade ou à beira de uma estrada, para servir de exemplo. Uma inscrição indicando o motivo do castigo era pendurada ao pescoço do condenado. Apesar de haver cruzes de formas diversas, os Romanos cravavam geralmente os supliciados sobre um madeiro transversal chamado patibulum, que era fixado no alto de um poste (crux commisa) ou mais abaixo, numa entalha (crux immisa). O condenado era pregado (ou amarrado com cordas) pelas mãos e pelos pés e exposto nu (as roupas que usara pertenciam por direito aos carrascos) ao suplício da tortura e da vergonha (para os Judeus, além disso, a crucificação era uma prova de maldição divina: Deuteronómio 21:22,23; Gálatas 3:13). A morte, que podia ser muito lenta, sobrevinha geralmente por asfixia, esgotamento e dificuldades respiratórias e circulatórias. Podia ser abreviada partindo as pernas do crucificado, impedindo-o assim de poder elevar-se para respirar. (Ver Martin Hengel, Crucifixion, Filadélfia: Fortress Press, 1977).
Em 1968, num cemitério a norte de Jerusalém, encontraram-se no nicho Nº 9, os ossos de um jovem de cerca de 25 anos chamado «João filho de Haggôl», crucificado em meados do primeiro século. Os ossos do calcanhar estavam atravessados por um grande cravo de 18 cm que os mantinha unidos. As tíbias estavam partidas por pancadas e as mãos tinham sido pregadas pelos punhos. É o testemunho arqueológico mais semelhante à crucificação descrita pelos Evangelhos (J. Briend, Bible et Terre Sainte, Julho/Agosto 1971, pág. 8).
27. Mateus 27:37; Marcos 15:26; Lucas 23:38; João 19:19.
28. Os dados históricos tardios e difíceis de verificar indicam que Pilatos foi exilado por Calígula para Vienne, cidade gaulesa do vale do Ródano, e que ele se suicidou ali. Uma lenda diz que os seus remorsos e o suicídio estão relacionados com o nome do Monte Pilatus, ao sul do lago de Lucerna, na Suiça.
29. Atribui-se a Pilatos um escrito apócrifo intitulado Carta de Pilatos a Cláudio, já conhecido de Tertuliano antes de 197, e uma Correspondência com Tibério que data da Idade Média.
30. Mateus 27:19.
31. Dorothy L. Sayers, The man born to be king, citado por Karl Barth, Esquisse d´une dogmatique, (Foi Vivante, 80), Delachaux & Niestlé, 1968, págs. 173-181.
32. Todos os relatos das testemunhas oculares da crucificação e do sepultamento de Jesus atingem o seu ponto culminante com a proclamação da Sua Ressurreição: Mateus 28:1-5; Marcos 16;1-18; Lucas 24:1-49; João 20:1-29; 21:1-19.
33. As consequências redentoras do sacrifício do calvário constituem o que a Bíblia chama «O mistério da piedade». (I Timóteo 3:16), explicado em particular nas epístolas (ver Efésios 2:1-22; Romanos 3:21-26, 5:1-11; II Coríntios 5:11 a 6:2; etc.) A importância e a complexidade do tema não permitem abordá-lo aqui.
34. Platão, Leis, 663.
35. A fábula conta que chegou um dia, a uma cidade longínqua, um viajante montado num elefante. Ouvindo a notícia, uns cegos que mendigavam à beira do caminho pediram-lhe que os deixasse tocar no animal, nem que fosse só por um momento, para ficarem com uma ideia do seu aspecto. Puseram-se então a apalpá-lo. Quando, um pouco mais tarde, o viajante já tinha retomado o seu caminho, os cegos desataram a discutir por não conseguirem pôr-se de acordo sobre aquilo que tinham examinado com as suas próprias mãos. Aquele que só tinha conseguido tocar na barriga do animal, definia o elefante como uma imensa bola rugosa; o que só tinha apalpado uma pata descrevia-o como um tronco de árvore; o que lhe tinha acariciado a tromba comparava-o com uma grande cobra; e o que lhe tinha agarrado a cauda identificava-o como uma pequena corda.
36. «O pecado que mais se aproxima de ser desesperadamente incurável é o orgulho da opinião própria.» (E. G. white, Testemunhos Selectos (Casa Publicadora Brasileira, 1954), Vol. III, págs. 183, 184.
37. Provérbios 26:12; Provérbios 12:15. Cf. Romanos 12:16.
38. E. G. white, O Grande Conflito (Publicadora Atlântico, 1986), págs 480-482; Mensagens Escolhidas (Casa Publicadora Brasileira, 1966), Livro I, págs. 169-170.
39. Voltaire, Lettre à D`Alembert, Fevereiro de 1776.
40. João 8:32.
41. João 1:9.

Roberto Badenas in ENCONTROS (Publicadora SerVir)

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