8.3.14

A Santificação e a Batalha Cristã

O apóstolo Paulo tinha tão próxima a comunhão de coração com o Cristo vivo que ele podia testificar: “Porque para mim o viver é Cristo” (Fil. 1:21), e “Estou crucificado com Cristo; logo, já não sou eu quem vive, mas Cristo vive em mim; e esse viver que, agora, tenho na carne, vivo pela fé no Filho de Deus, que me amou e a si mesmo se entregou por mim.” (Gál. 2:20).

Com este profundo testemunho o apóstolo toca sobre a luta interna do cristão, que ele também já conhece por si mesmo (1Cor. 9:27), e que ele desenvolve mais plenamente em Gál. 5:16-24 e Rom. 7:14-25.

Primeiro de tudo, é essencial notar a voz passiva na confissão de Paulo: “Eu tenho sido crucificado com Cristo” (Gál. 2:19). Com isto, Paulo se refere ao seu batismo na morte histórica de Cristo sobre a Cruz. Legalmente, diante de Deus, diante de Sua santa Lei, o apóstolo diz: “Eu estou morto, ‘já não sou eu quem
vive’ (Gál. 2:20)”. Paulo significa por seu “eu” morto, o seu eu centralizado, o ego natural. Ele também chama isso de “o velho homem” ou “natureza” (Col. 3:9; Efé. 4:22), “a carne com suas paixões e desejos” (Gál. 5:24); ou simplesmente, “a carne” (Rom. 7:5). Paulo não diz que o seu “eu” estava inclinado à morte, ou beirando à morte, mas ele tinha sido “crucificado”, o que indica um prolongado processo de morte. Embora alguém crucificado era legalmente morto e exterminado, na realidade tal pessoa poderia viver por vários dias e noites sobre a cruz, mas em sofrimentos e agonias crescentes.

Esta ilustração pode servir para esclarecer a mensagem do apóstolo em Gál. 5 e Rom. 7: Por um lado, os cristãos batizados têm que se considerar a si mesmos, pela fé em Cristo, legalmente mortos para o pecado e para a condenação da Lei de Deus (Rom. 6:11; 7:4). Por outro lado, eles descobrem que o velho “eu” está ainda vivo em realidade empírica; que as tendências herdadas e cultivadas para o mal e as práticas condenadas ainda enviam os seus desejos e impulsos ao coração purificado.

É um fato significante que nenhuma carta apostólica do Novo Testamento pressupõe uma Igreja sem pecado ou uma vida cristã sem a permanente batalha com o “eu”. Todos os escritos do Novo Testamento estão plenos de exortações e admoestações morais para travarmos a luta penosa contra a carne, o mundo e os poderes das trevas.

Para os crentes batizados, contudo, não há desespero ou derrota necessários nesta batalha. Cristo habita em seus corações e lhes dá a vitória (1Cor. 15:57). Os crentes são chamados a ser “fortes no Senhor e na força do Seu poder” (Efé. 6:10). Sendo guiados por Seu Espírito, o fruto do Espírito pode ser desenvolvido: “amor, alegria, paz, longanimidade, benignidade, bondade, fidelidade, mansidão, domínio próprio.” (Gál. 5:22-23). Paulo, portanto, convoca: “Andai no Espírito e jamais satisfareis à concupiscência da carne… Se sois guiados pelo Espírito, não estais sob a lei.” (Gál. 5:16, 18).

“Assim, pois, irmãos, somos devedores, não à carne como se constrangidos a viver segundo a carne. Porque, se viverdes segundo a carne, caminhais para a morte; mas, se, pelo Espírito, mortificardes os feitos do corpo, certamente, vivereis. Pois todos os que são guiados pelo Espírito de Deus são filhos de Deus.” (Rom. 8:12-14).

“Quanto ao trato passado, vos despojeis do velho homem, que se corrompe segundo as concupiscências do engano, e vos renoveis no espírito do vosso entendimento, e vos revistais do novo homem, criado segundo Deus, em justiça e retidão procedentes da verdade.” (Efé. 4:22-24).

Tiago acrescenta a importante ideia de que várias tribulações da vida para o cristão operam como um teste de sua fé que produz firmeza e, em seu caminho de batalha, perfeição de caráter (Tia. 1:2-4; compare com Rom. 5:3-4). Estas admoestações apostólicas mostram que a vida cristã não é apenas de paz e alegria; pelo contrário, o caminho da perfeição cristã ou santificação conhece inexpressíveis profundidades de luta, tristeza e arrependimento, ao lado das alturas da alegria redentora.

Nem todos os cristãos experimentarão necessariamente a mesma intensidade da batalha espiritual, como Ellen G. White anota: “Enquanto alguns são continuamente atormentados, afligidos e em tribulação por causa de seus infelizes traços de caráter, tendo que guerrear com inimigos internos e a corrupção de sua natureza, outros não têm mesmo a metade de conflitos a travar.” (Testimonies, vol. 2, p. 74).

O caminho da perfeição cristã nunca pode ser de mero sentimento de santidade ou de isenção de pecado, por causa que Deus revelará gradualmente mais e mais os defeitos de nosso caráter através de um sempre crescente entendimento e eficácia de Sua Lei espiritual, santa e perfeita. Paulo tenta comunicar esta mensagem particular no muito debatido cap. 7 de sua epistola aos Romanos, versos 14-25.

O segredo para entender esta passagem parece descansar na compreensão de que para Paulo a santa Lei de Deus, através da operação do Espírito Santo (“a lei é espiritual”, v. 14), funciona especificamente para convencer o cristão, de modo crescente, de sua própria natureza pecaminosa inerente, a despeito de seus desejos e ambições santos. “Porque eu sei que em mim, isto é, na minha carne, não habita bem nenhum, pois o querer o bem está em mim; não, porém, o efetuá-lo.” (Rom. 7:18). O apóstolo alcança o clímax de seu auto conhecimento religioso quando ele finalmente confessa diante de Deus tanto sua extrema falência moral quanto sua completa e exclusiva confiança na justiça de Cristo. “Desventurado homem que sou! Quem me livrará do corpo desta morte? Graças a Deus por Jesus Cristo, nosso Senhor.” (Rom. 7:24-25).

A consciência de ambas verdades simultaneamente na madura experiência cristã de Paulo é a mais profunda prova de que a perfeição cristã não é uma vida de extática alegria ou entusiasmo emocional, mas é também uma vida de fiel obediência e devota submissão ao nosso divino Senhor e Salvador. Lutando no poder divino com toda a armadura de Deus (Efé. 6:13-18), o cristão é chamado a destruir cada obstáculo à sua conexão viva com Deus e “levar todo pensamento cativo à obediência de Cristo” (2Cor. 10:5). O cristão não pode aceitar nenhum outro deus diante dEle. Cristo deseja reproduzir Sua própria perfeição de caráter naqueles que foram originalmente criados à Sua imagem e semelhança. “Meus filhos, por quem, de novo, sofro as dores de parto, até ser Cristo formado em vós.” (Gál. 4:19).

Isto pode ser atingido contudo, somente quando o cristão contempla continuamente e de todo o coração a glória transformadora de Cristo, descansando em Seu santo amor que consome todo o pecado. “E todos nós, com o rosto desvendado, contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados, de glória em glória, na sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito.” (2Cor. 3:18).

Esta é a dinâmica, crescente perfeição cristã que o apóstolo Paulo exalta e com santa paixão estimula a primitiva igreja e igualmente a igreja de todos os séculos. O imperativo do concerto do Antigo Testamento, para seguir a Yahweh não é anulado, mas cumprido e concretizado no verdadeiro seguir a Jesus Cristo. Conhecer a Cristo e amá-lO com toda a nossa alma e com todo o nosso coração não significa nem a renúncia a Yahweh nem a apostasia de Moisés e os profetas de Israel. Pelo contrário, somente através do Filho, “que está no seio do Pai” (João 1:18), pode o Pai ser conhecido, amado, obedecido e plenamente honrado.

Dr. Hans K. LaRondelle, A Idéia Bíblica de Perfeição. Tradução: Pr. Roberto Biagini.

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